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SOMBRAS DA SELVA

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No começo de agosto, dois índios de uma tribo que muitos consideravam extinta foram localizados no noroeste do Mato Grosso. Conhecidos como “piripkuras”, são sobreviventes de um massacre. A eterna rota de fuga dos misteriosos Tucan e Mande-í revela não apenas a saga de um povo perdido mas também a barbárie oculta sob o desmatamento na Amazônia.

POR FELIPE MILANEZ.

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Diz um famoso ditado entre os sertanistas que, “no mato, quem não quer ser visto deve ficar calado”. Por isso, assim que ouviu uma risada entre as árvores, o experiente Jair Candor também sorriu. Era 7 de agosto e, com a estiagem na Amazônia, o chão ardia da seca e das queimadas no norte do Mato Grosso.

Depois de cinco meses e várias expedições da Frente de Proteção Etno- Ambiental Madeirinha, tudo o que seus exaustos integrantes haviam visto eram vestígios antigos de presença indígena nada inspiradores. Agora, com a simples risada, tudo mudava. A esperança da sobrevivência de dois índios remanescentes de massacres estava prestes a confirmar-se.

“Ficar um mês direto dentro da floresta não é fácil. Estávamos esgotados”, lembra-se Candor. “Insisti para seguirmos até o fim do igarapé Garcinha, mas foi só andar um pouco mais para ouvi-los conversando e encontrar pegadas. Estavam rindo alto, num papo animado. Paramos. Desci até a margem e esperei.”

O sertanista não se esquece dos detalhes do encontro. “Quando os dois passaram, saltei na frente deles. O mais velho ameaçou me agredir, mas logo viram que éramos gente amiga.” Rita e Aripã, dois índios da expedição que agiam como intérpretes, começaram a conversar. “Então, eles aceitaram ir conosco até o acampamento”, completa Candor. “Sem a risada, a expedição teria passado a 30 metros deles, e não conseguiria contato.”

Ninguém sabe exatamente ainda a que etnia pertencem os dois índios buscados por Candor e sua equipe, mas a Fundação Nacional do Índio (Funai) refere-se a eles como Piripkura, um nome dado anos atrás pelos índios gaviões, também do noroeste do Mato Grosso.

Sabe-se apenas a língua que falam, o tupi-kawahib (os povos indígenas dividem-se em famílias lingüísticas, e dentro delas existem as línguas e, culturalmente, as etnias). A despeito das incertezas, o encontro com os piripkuras talvez seja a descoberta mais relevante do indigenismo brasileiro no século 21.

Desde que o etnólogo Curt Nimuendaju e o antropólogo Levy-Strauss passaram pela região, antes da metade do século passado, sabia-se da existência de um grupo tupi-kawahib habitando essa parte da floresta, há muito cobiçada por grileiros e madeireiros. Todavia, com a falta de novos sinais e a vulnerabilidade da área – não há reserva demarcada -, eles foram tidos como dizimados, até que, nos anos 1980, surgiram evidências de uma família com cerca de 20 índios morando nas proximidades do rio Pardo, 70 quilômetros ao norte de onde os dois piripkuras foram encontrados.

Essa aldeia nômade ainda resiste? Como estão vivendo? O contato de agora poderá revelar a história de um povo que parece estar fugindo da colonização, a cada dia mais próxima e ameaçadora nesse rincão da Amazônia Tucan, cerca de 50 anos, o mais velho dos dois piripkuras, estava doente.

No acampamento, a enfermeira Joelina Ribeiro Jorge, 57 anos, notou que a urina dele tinha “cor de Coca-Cola”, o que explicava as fortes dores no estômago que ele sentia, e decidiu mandá-lo para Ji-Paraná, em Rondônia. Sua vesícula estava necrosada. “Ele tinha pedras na vesícula do tamanho de bolas de gude. Uma semana mais e morreria”, relatou o cirurgião que o atendeu.

Para piorar, depois de 15 dias na cidade, Tucan contraiu catapora. O outro índio, Mande-í, de uns 35 anos, ficou com a equipe de campo. Mas, entediado com as novas companhias e a monotonia do acampamento – ou talvez por pensar que Tucan estivesse morto -, voltou para a floresta, uma semana depois.

O período em que Tucan convalesce tem sido útil aos intérpretes que tentam desvendar o mistério do seu povo. Quando abro a porta do quarto no hospital de Ji-Paraná, o índio está estirado sobre uma rede. Parece desidratado, e o braço estendido deixa correr soro pelas veias.

São quase 10 da manhã, e Mauro de Oliveira tenta apresentar-me a Tucan. Oliveira aprendeu a falar tupi-kawahib após o contato, em 1987, com índios uru-eu-wau-waus no leste de Rondônia. Hoje trabalha para a ONG indigenista Kanindé.

“Tapu’unha icatu”, diz ele para Tucan. “Branco bom”, traduz para mim. O índio tem o olhar distante. Sua pele é dura, cheia de calos grossos. E falta a ponta do dedo médio de sua mão direita: foi comida por um porco queixada.

Tucan não fala nada. Dias depois, porém, com a cicatrização do corte de 23 pontos em seu abdômen e muitos goles de água com mel, ele se mostra mais à vontade com estranhos. Passa a contar histórias, gesticular. Certo dia, afunila o rosto e faz bico numa careta engraçada: imitava uma anta, contando vantagens da vez em que roubaram o animal, caça de uma onça-pintada.

Os casos que Tucan descreve nos ajudam a entender a extraordinária capacidade de sobrevivência dos dois piripkuras em sua eterna rota de fuga. Sem fazer flechas, eles caçam apenas com pedaços de pau ou com um facão e um machado que acharam na floresta. O índio conta repetidas vezes uma história sombria.

“Ele se lembra de um grupo de índios que atravessou um grande rio, que deve ser o Roosevelt, em uma canoa”, traduz Oliveira. “Mas, quando chegaram ao outro lado, um punhado de brancos começou a atirar. Vários índios morreram.

Os brancos pegaram a canoa e fizeram o trajeto inverso pelo rio. Os outros índios, que estavam na margem oposta, fugiram. Mas os brancos seguiram seus rastros e chegaram à aldeia.” Tucan senta-se na rede e junta os punhos, como se portasse algemas.

“Ele diz que estava sobre uma árvore, colhendo mel. Desceu rápido e ficou olhando de longe, escondido. Amarraram as mãos de seus parentes. Depois, cortaram a cabeça deles, uma a uma”, prossegue Oliveira. “Juntaram as cabeças com os corpos e atearam fogo. Tucan diz que saiu correndo. Depois reencontrou Mande-í e outros.”

Formalmente, essa selva de barbáries em que habitam Tucan e Mande-í situa-se em Colniza, município com quase 28 mil quilômetros quadrados – área equivalente à do estado de Alagoas.

Quem vive lá sabe quão impreciso é o índice de 165 assassinatos por 100 mil habitantes, números que, oficialmente, já fazem dela a cidade mais violenta do país. A questão é que, “nessas estatísticas, eles só contam quem morre no hospital”, comenta o dono de um pequeno restaurante.

“Se forem contabilizar quem perde a vida no campo, onde acontecem assassinatos todos os dias, Colniza seria pior que Bagdá”, compara. Num hotel no bairro de Guariba, um jovem, que pede para não ser identificado, pinta um bom retrato da cidade: “Aqui, as pessoas são mortas”, diz ele. “Apenas isso. Simplesmente são mortas, sem que ninguém as tenha matado.”

O caminho para Colniza é a estrada de terra desde a divisa com Rondônia, uma viagem de 500 quilômetros por um cenário apocalíptico em que, no auge da seca, nuvens de poeira, caminhões carregados de tora e queimadas ilustram boa parte do trajeto.

O desmatamento no município é aterrador. Chegamos à cidade no dia seguinte ao de uma operação da Polícia Federal na qual foram presos 40 bandidos, a maioria pistoleiros, mas era como se nada de anormal tivesse acontecido. A criminalidade tornou-se um assunto banal.
Sempre foi assim.

O norte mato-grossense era uma terra esquecida nos anos 1970, quando povos indígenas, como os piripkuras, sofreram os maiores massacres. Habitada por seringueiros, a região não contava com nenhuma estrutura de ocupação. Em 1973, a tênue estabilidade seringalista terminou.

O grileiro conhecido pelo nome de Reveria determinou que fosse desmatada uma extensão de 90 quilômetros ao longo do rio Roosevelt, nas duas margens, com uma largura de 3 quilômetros. Os ribeirinhos correram para o mato, entrando em contato com índios isolados.

Após esse primeiro conflito territorial, em 1975 um grupo madeireiro fundou a Colonização Indústria e Comércio Ltda., com a sigla de Colniza, cuja sede ficava próxima ao rio Aripuanã. O Estado passou a distribuir títulos de terras para pessoas influentes. Foi o começo da grilagem em uma das regiões mais vulneráveis e menos protegidas de toda a Amazônia.

Tradicionalmente espremidos entre grupos gês, a leste, e os também guerreiros mondés, a oeste, os pacíficos e nômades tupi-kawahibs sobreviveram usando suas técnicas de esconderijo na floresta, matando a fome com a caça e a coleta.

O nome Piripkura é uma espécie de apelido dado pelos inimigos índios gaviões, do grupo Mondé. Significa borboleta, mariposa. Aqueles que não param em nenhum lugar e são frágeis.

Outro protagonista desse drama é a índia conhecida como Rita. Integrante da equipe de campo do sertanista Jair Candor, ela é uma piripkura desgarrada do grupo. Aparentando ter cerca de 40 anos, sua história de vida é tenebrosa.

Em 1984, um piloto de avião fez uma denúncia de que havia uma índia escravizada em uma fazenda da região. A Funai resgatou Rita e constituiu, com a missão cristã Operação Amazônia Nativa (Opan), uma frente de trabalho para demarcar uma terra indígena no território kawahib. Rita foi levada para viver entre os karipunas, no norte de Rondônia, também falantes do tupi-kawahib.

Em 1991, sem que houvesse demarcado a terra dos índios isolados, a frente Madeirinha foi deslocada para outra área. Rita acompanhou esse trâmite a distância, até que passou a ser requisitada pela Funai para servir de intérprete nas expedições recentes. Dessa vez havia uma dificuldade especial: reencontrar parentes que ela havia abandonado.

Diz a índia que os piripkuras a evitam desde que ela se recusou a casar-se com Tucan quando ainda vivia no mato. “Meu marido antigo morreu, e Tucan matou meus dois filhos para ficar comigo”, diz ela.

Dentro de um ritual tradicional, ele teria cortado o escalpo das crianças e as enterrado. Não se sabe se isso é verdade. Mas foi nessa época que Rita e outro homem decidiram sair pela floresta em busca de mais índios para formar novas famílias. O cerco a que estavam submetidos os fez bater, ingenuamente, à porta de uma fazenda.

Rita virou escrava sexual. O índio que estava com ela foi colocado dentro de um avião e nunca mais foi visto. Rita sempre escondera seu passado. No entanto, ao reencontrar Tucan e Mande-í, decidiu contar o que sabia. Ela recorda-se da vida com seus pais, de uma prima, de uma senhora que chama de avó, de irmãs e de outros homens.

Junta nos dedos entre nove e 11 pessoas que viviam com ela. Mesmo com dificuldade para se expressar em português, descreve os ataques que sofreram. E detalha rituais de canibalismo que praticavam.

“Uma vez, estava todo mundo dormindo. Chegou um monte de branco atirando. Uma prima, que estava na rede, e outra prima, mais velha, que dormia no chão, todas morreram. Um índio flechou um branco bem aqui na costela. Fugimos de noite e dormimos no mato. No outro dia, minha avó e minha tia voltaram para lá, só elas. Cortaram toda a carne dos parentes que estavam mortos, os dedos, a barriga, e levaram embrulhado na casca de buriti. Para a gente comer”, relata devagar, com os olhos fixos em suas mãos. Até rever Tucan e Mande-í, ela acreditava que toda a sua nação havia sido morta.

A 70 quilômetros de onde os piripkuras foram encontrados, a Funai está demarcando a Terra Indígena Kawahib do Rio Pardo, onde vive o grupo isolado, com mais de 20 pessoas, avistado nos anos 1980. Com base no relato de Tucan, é possível supor que sejam parentes, separados no massacre do rio Roosevelt.

No entorno dessa região, a Funai afirma ter outras cinco evidências de índios isolados, hoje ameaçados por grileiros e madeireiros que temem perder as terras que exploram. “Há fortes evidências de que existam mais índios na área”, afirma Elias Bigio, coordenador-geral de Índios Isolados da Funai. A instituição deu início ao processo de demarcação de uma futura terra indígena interditando a área onde Tucan e Mande-í foram localizados.

Tão logo deixe o hospital, Tucan vai voltar para o acampamento na mata. Espera-se que, com isso, Mande-í reapareça. Os sertanistas cogitam a possibilidade de andar com eles por outras áreas em que ainda existam índios sem contato na região.

Se estiver correta a teoria de que foram separados pelo massacre do rio Roosevelt e, posteriormente, isolados em ilhas cortadas por estradas clandestinas e pela ocupação, é possível que, no futuro, uma grande nação Kawahib seja refeita – um símbolo de esperança em uma Amazônia a cada dia mais ameaçada.

Publicado na Revista National Geographic. 

Written by Felipe Milanez

August 31, 2011 at 5:58 pm